quinta-feira, 27 de março de 2014

França de Corneille, Racine & Molière

A França Trágica de Corneille e Racine 
& da Comédia Sagaz de Moliére:

  Até então consumida pos disputas e guerras internas, a França do século XVII vai projetar-se política e culturalmente.  O teatro clássico francês tinha seu público diferenciado do resto da Europa, consistia principalmente em nobres da corte. Era o público que apreciava os versos grandiloquentes de Corneille dispostos na estrutura lógica e coerente do texto herdado dos clássicos. Um público que também apreciava Racine que introduziu na poesia bem comportada o realismo psicológico com contradições apaixonadas e trágicas.

"A maneira de dar vale mais que o que se dá."
   
  Corneille criou um novo estilo teatral, em que os sentimentos trágicos postos em cena pela primeira vez em um universo plausível, o da sociedade contemporânea. Escreveu algumas comédias, mas suas peças são basicamente tragédias. Foi nomeado autor oficial por nomeação do Cardeal de Richelieu, porém, rompe esse status para escrever obras que exaltam os sentimentos da nobreza (O Cid), que recordam que os políticos não estão acima das leis. Com a morte de Richelieu e o período da "Fronda", a crise de identidade que padece a França se reflete na obra de Corneille, na qual escreveu “Rodugone”, uma tragédia sobre a guerra civil e também “Andrômeda” que o tema é sobre a natureza do rei, subordinado às vicissitudes da história, fazendo assim que este ganhe humanidade. 

(Cardeal de Richelieu)

 

  Foi com a peça "Andrômeda" que foi necessário construir o Teatro de Petit-Bourbon em 1650, para o uso da maquinaria necessária. Até o final de sua vida Corneille inovava o teatro francês com os efeitos especiais (O Velocinode de Ouro) e testando o teatro musical (Agésilas). Aborda também o tema da renuncia mostrando a incompatibilidade do cargo real com o direito da felicidade (Suréna, Sertorius).
  A sua colaboração na França foi tão importante que surgiu o adjetivo corneliano, que significa:


“a vez da vontade e do heroísmo, da força e da densidade literária, da grandeza da alma e da integridade e uma oposição irredutível aos pontos de vista.” 


  A peça "O Cid" até hoje é referência e representa o último tributo de Corneille à individualidade. A partir de então o autor segue sua busca numa brilhante sucedida de ir ao encontro de unidades de tempo, de ação, e de lugar, que modelaram a escrita dos séculos XVII e XVIII na França. "O Cid" é uma obra de transição de tema espanhol, como muitas outras obras suas. É baseada no amor e no dever patriótico. Essa peça vem acompanhada de escândalo, porque critica Corneille por não respeitar as regras clássicas do teatro e do bom gosto (classicismo).


  A dramaturgia de Corneille é profunda, pois opõe os tipos mais grandiosos aos mais ignóbeis dando força e movimento da ação, as cintilações de lirismo e a construção harmoniosa de versos.

"O vício, tal como a virtude, cresce em passos pequenos."

  Racine é uma figura ascendente no teatro francês da época, cuja obras, as intrigas prevalecem sobre os sentimentos e aparecem menos heróicos e mais humanos. Sua obra é mais ordeira que a de Corneille.
 Seu primeiro sucesso foi com “Alexandre, o Grande”. Do ponto de vista lógico, há racionalismo no rigor da sua obra, que se guia por um realismo psicológico de extraordinária eficiência dramática. Do ponto de vista moral, sua obra apresenta um fundo fatalista e religioso. Esse fundo religioso, contudo, não é o cristão. Racine substitui os padrões de comportamento da sua formação católica pelos modelos da tragédia grega . Tragédias de Eurípedes foram suas referências e se acentua na peça “Ifigênia”, tragédia preferida de Voltaire. Uma peça terrível e finamente humana aonde o ápice chega quando uma vítima toma o lugar da outra. (Clique AQUI para saber mais sobre o teatro Grego)
  Racine foi o único criador moderno de tragédias míticas, a sabedoria de decompor psicologicamente os mitos de que fez uso, reduzindo-os à sua dimensão mais humana

   
  Sua obra-prima foi “Fedra”, seu realismo psicológico e de sua analise de mulher. Toda ação é centrada em Fedra, personagem densa, de fundo grego euripidiano, sacudida, porém pelos entrechoques da consciência cristã. Lançou no palco personagens martirizadas por uma existência brutal, entrecruzada de crimes, perversidade, tendências mórbidas, assassínio e incesto, numa espécie de contrapartida crua e violenta de tudo o que aprende a temer com sua mocidade.
 Racine assimila a feminilidade sem abandonar a masculinidade (a bissexualidade emocional), uma sensibilidade e relacionamento com a paixão e o amor. De suas tragédias tiram nomes femininos, dramatizava a fraqueza humana e a falha trágica de suas personagens na maioria das peças é representada pela vitória da paixão sobre a razão (máxima intensificação do sentimento).
  Racine tinha duas características indispensáveis para a tragédia: um temperamento dramático e uma estranha perturbação de espírito. Uma comovente elaboração da paixão humana.
 Essas duas personalidades do teatro clássico infelizmente não sobreviveram à Revolução Francesa, pois no século XVIII a França assiste uma mudança radical na temática e nos padrões da arte teatral dando início a um novo modelo: o Romantismo.

"Deveríamos olhar demoradamente para nós próprios 
antes de pensarmos em julgar os outros."

   Já Moliére seguiu a veia cômica no teatro francês, considerado o mestre cômico da dramaturgia moderna bastante influenciado pela Commedia (ambulante) dell´Arte e também tendo o conhecimento do teatro romano. (Clique AQUI para saber mais sobre o teatro Grego) 
   A maioria das suas peças foram escritas em versos alexandrinos, ou seja, versos de doze sílabas e com adesão geral da unidade de tempo, lugar e ação.  Seu estilo era lúcido mesmo nos momentos mais tensos, contidos ou nos momentos mais lúdicos, o chamado humor do cérebro.
   Nas suas peças a justiça é sempre feita. Temas cotidianos com olhar crítico e satírico que mostrava falsos sábios, corrupção em diversas classes sociais, etc. Também retratou com grande maestria os grandes defeitos e virtudes da alma humana, comportamentos e sentimentos como o de inveja, cobiça, orgulho, avareza, arrogância.
   Em função desse realismo e da ironia sofreu perseguições, protestos principalmente da Igreja e da classe alta.
   Moliére tentou elevar a comédia ao nível da tragédia (homens superiores). Adaptava seus papéis aos atores e tornou-se o primeiro encenador como hoje conhecemos, se preocupando com ensaios e dando atenção aos detalhes.
   Em 1664 mostrou uma versão em três atos de sua grande sátira, "Tartufo". Porém tamanha era a irreverência que o Rei Luís XIV proibiu apresentação da peça, somente cinco anos depois o público iria ver. A França era varrida por uma reação contra crescente vaga de ceticismo religioso e científico. O pensamento liberal era denunciado pelas seitas religiosas e custou ao autor ser acusado de ateu por aqueles cuja a sensibilidade tinha sido ferida. Moliére insistiu que não tinha atacado a religião e sim a forma pela qual podia ser usada para disfarçar interesses próprios. "Tartufo" é de uma força tanto ridícula quanto sinistra.

(Tartufo)

   Mas a peça que marcou, de fato, um retorno à sátira, é sua obra seguinte “O Avarento”, baseado na Aululária de Plauto, que tratava de uma caricatura da avareza e da cobiça. Moliére criou uma obra prima com “As Sabichonas”, uma de suas comédias mais serenas. Antes de morreu teve tempo de escrever "O Doente Imaginário", aonde interpretou o próprio personagem devido ao seu estado de saúde decadente, realçando o realismo. 

 

 Quando faleceu a igreja proibiu que o corpo fosse sepultado no cemitério paroquial, somente quando o rei interveio que foi enterrado com uma cerimônia simples.
  Um parêntese do quanto foi importante esse novo estilo teatral francês, isso porque foi dada a oportunidade de construir a Comédie-Française, ou Théâtre-Français, o único teatro estatal da França, e um dos poucos que têm uma companhia permanente de atores.
  O dramaturgo com maior ligação à Comédie-Française foi Molière, considerado o patrono dos atores franceses, no entanto, Molière havia falecido há sete anos quando nasceu "La Maison de Molière".

(homenagem à Molière na Comédie-Française)

   A Comédie-Française foi fundada por decreto de Luís XIV em 1680 para fundir numa só as duas únicas companhias parisienses de altura, a companhia do Hôtel Guénégaud e a do Hôtel de Bourgogne. O repertório incluía peças de Molière e de Jean Racine, além de outras de Pierre Corneille, Paul Scarron e Jean de Rotrou.
   Em 1793, durante a Revolução Francesa, a Comédie-Française foi fechada por ordem do "Comité de salut public", com ordem de prisão para os atores.
 Em 1799, o novo governo colocou à disposição dos atores que pretendiam reconstituir a companhia, a sala Richelieu.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Commedia Dell´Arte

Commedia dell´Arte: 
A Diversão Ambulante Italiana



   A Commedia dell´Arte se afirmou do século XV ao XVIII na Itália. Sua influência se espalhou por toda a Europa. O foco da Commedia dell´Arte era a improvisação, não existia texto, apenas um roteiro (canovaccio) para orientação dos atores. O canovaccio era um caderno onde aparecia no princípio o nome das personagens e um conhecimento geral do conteúdo da cena. Estas estruturas tinham particularidade de descrever as situações e indicar as personagens que irão estar nelas. Os diálogos eram esboçados e cabia aos atores através da improvisação completar e desenvolver os mesmos, por isso,  tinha a marca registrada de que o ator é o teatro.
   A Commedia dell´arte era representada por máscaras que alcançaria ampla recepção durante sua existência. Os comediantes trabalhavam durante anos no aprimoramento de sua técnica corporal e vocal, dedicando geralmente toda a vida, a representação de um único personagem-tipo. Caracterizados por máscaras, os personagens não possuiam expressividade própria, que deixavam a boca e a parte inferior do rosto descobertas, cabendo aos atores a tarefa de conferir-lhes vida por meio de suas performances.
  A força da apresentação era: "delle maschere", que reside no fato do ator verter criatividade e vigor na especialização de um tipo. Presume-se que, com o passar do tempo, houvesse uma forte apropriação do personagem pelo ator, que poderia ser alçado a categoria de grande intérprete. Além de preservar a tradição dos tipos, a máscara instaurava uma comunicação direta com os espectadores, pois apresentava traços de comportamento mais ou menos fixos, já decodificados e reconhecíveis como tal pelo público. 


      Essas máscaras ganhavam contorno e denominações diferentes de acordo com a região em que eram apresentadas. De modo geral, a tipologia da Commedia Dell'Arte se caracterizava em figuras que atuavam com frequência na forma de dupla, como os "zanni". 
   
"Zanni, terminologia que indica uma abreviação de Giovanni, um nome bastante popular na Itália, funcionando como uma referência a determinado setor da vida social, aquele que abriga os criados, os esfomeados, os desvalidos.  Assim como, entre nós, o José se torna Zé e pode ser visto como o "Zé Ninguém"".

    Os tipos que se aproximavam do "zanni" se caracterizavam como criados bufos, glutões esfomeados e trapaceiros, originários de regiões pobres da Itália, como Bérgamo, aos quais restava apenas a criatividade, a comicidade e certa malandragem, como forma de sobrevivência social. Dessas características, provavelmente um reflexo da condição social também do público, decorreria a enorme identificação popular que alcançavam. Seus vários nomes, de acordo com as diferentes regiões em que eram representados, relacionavam-se a objetos de uso cotidiano e, às vezes, faziam referência à determinados alimentos, enfatizando os aspectos de glutões. Arlechino, Truffaldino, Pasqualino, Tortelino, Nacherino, Gradellino, Mezzetino, Nepolino, Fagotino, Pregolino, Temellino, Tabachino, Polpettino, Bagolino, Fritellino, Trivallino, Coviello, Pecholino, Pulcinella, Polichinelle, Brighela, Pedrollino, Mascarille, Bertollino, são alguns dos nomes mais recorrentes.
    Na França, apareceram como Scapin e Sganarelle, entre outros, frequentes nas comédias de Moliére. E também o Pierrô, como ficou mais conhecido, a partir das versões francesas da Commedia Dell'Arte. 
    Arlequim viria a ser a principal figura, incorporando em sua forma aspectos grotescos do diabo medieval. (no final do post mais detalhes da história de Arlequim)
   Construída sobre bases teatrais não canônicas e extra literárias a Commedia Dell´Arte, estabelecia um paralelo importante em relação ao teatro oficial, assim, transformando as práticas teatrais européias, buscando, em maior ou menor grau, uma modalidade de expressão artística que iria exigir domínio técnico desses comediantes na execução de cantos, danças e acrobacias, o que determinaria o caráter de ofício de sua atividade. Aspectos que levariam diversos historiadores a considerar as companhias de Commedia Dell'Arte como sendo responsáveis pelas primeiras práticas profissionais em teatro, além de serem vistas como o primeiro grande laboratório do ator.
    Herdeira de farsas representadas pelos bobos da corte da Idade Média, o que mais atraia o público eram os "lazzi" (achados cômicos que eram brincadeiras, gesticulações endoidecidas e a algazarra). Ela também absorveu da antiga comédia latina certos recursos teatrais, incorporando nas províncias italianas estilo de personagens, gestos, vestimentas e diferentes modos de falar. 

(Bobo da Corte)

  Grandes personagens foram criadas na Commedia dell´Arte: 



                                    (Pierrô)                               (Covielle)



  
                                (Brighella)                                    (Tartaglia)

(Pulcinella)
     
 
 (Columbina)

    As apresentações eram ambulantes, transportando atores, cenários e guarda roupas em enormes carroções. Geralmente se apresentavam nas cidades mais importantes ou onde houvesse feiras anuais.
   As companhias eram formadas por integrantes oriundos das camadas mais pobres da sociedade, que encontravam nas atividades das trupes uma possibilidade de sobrevivência, incluindo mulheres e nobres decadentes. Estes últimos passavam a se responsabilizar pela escrita dos roteiros e repertórios, já que se destacavam por sua origem cultural letrada.
    Utilizando um acervo de materiais constavam trechos paródicos de comédias clássicas, sátiras, farsas, poemas, citações musicais, piadas e danças obscenas, números circenses, cenas de amor e pantomimas. Com a repetição das ações, os comediantes remontavam e associavam elementos de seus próprios acervos artísticos de acordo com o lugar e a ocasião numa performance viva que conferia espontaneidade e atualidade a cada apresentação. 
    Uma dupla de velhos era representada por Pantaleão (o patrão) e pelo Doutor (o sábio). Havia ainda os casal de namorados e o Capitão, um soldado espanhol que sempre tentava conquistar uma dama, sem conseguir seu intento. As duplas de personagens cômicos fazem parte de uma longa tradição presente nas performances dos mimos, antes mesmo, do apogeu do teatro grego clássico. A comicidade produzida pelas intrigas das duplas, gerando situações ambíguas e confusões de identidade, foi se multiplicando ao longo da trajetória do gênero cômico e tornando-se um artifício teatral com largo uso na criação de peripécias

                         
 (Doutor & Pantaleão)

      As máscaras de Pantaleão e do Doutor configuravam homens velhos e representantes dos setores mais influentes da recente sociedade burguesa, detentores do poder econômico, do saber estabelecido e dos códigos morais vigentes. Nos enredos, geralmente, Pantaleão discorda das escolhas amorosas das filhas, assumindo ele próprio a tarefa de designar-lhes o pretendente em condições de oferecer o maior dote e as maiores possibilidades de ampliação da fortuna familiar. Apesar de avarento e autoritário em relação aos seus criados, é um pai amoroso e dedicado, demonstrando um enorme ciúme em relação às filhas. 
   Pantaleão é um tipo que influenciaria não apenas Moliére na pele de seu memorável Harpagon, de "O Avarento", como inúmeros outros autores, tais como Gil Vicente e Federico Garcia Lorca. Na dramaturgia brasileira, aparece como o Ederaldo, de "A Farsa da Boa Preguiça", de Ariano Suassuna, e como o próprio Pantaleão, de "O Mambembe", de Artur Azevedo. 
    A configuração do Doutor estaria ligada a alguns tipos emergentes na sociedade burguesa, tais como o advogado e o médico, detentores do monopólio intelectual. Caricaturado como falso portador do saber no campo das letras, das ciências e das leis, carrega um pesado livro debaixo do braço e se esmera nas citações em latim. Torna-se o aliado natural de Pantaleão. O Doutor seria, na leitura de Jacobi, descendente do sabichão Dossenus, da farsa "atellana", tipo que viria a ser explorado mais de uma vez por Moliére, numa crítica ao charlatanismo da medicina de sua época, em peças como "O Médico à Força" e "O Doente Imaginário". 

 (Os Namorados)

    Os namorados não eram tipos cômicos e, portanto, não se caracterizavam pelo uso de máscaras. Os amorosos e as amorosas das tramas, que normalmente se opunham à vontade dos pais na escolha de seus parceiros, eram responsáveis pelo toque poético das comédias, abusando em seus discursos de figuras de linguagem, tais como metáforas, antíteses, metonímias. Para seus intérpretes, o conhecimento de retórica era fundamental e, em função disso, geralmente, eram representados pelos atores mais cultos, poetas e nobres decadentes que se juntavam às companhias.
    Podemos ver nos casais de namorados a gênese de uma tipologia que iria marcar para sempre o teatro ocidental, transformando-se, com o tempo, no galã e na ingênua das comédias de costumes. 


(Capitão)

     O Capitão era representado como um soldado fanfarrão, preguiçoso, mentiroso, contador de vantagens e incapaz de resolver os obstáculos quando estes surgiam. Descendente do "Miles Gloriosus ou "O Soldado Fanfarrão", de Plauto, o Capitão da Commedia Dell'Arte viria a ser uma sátira ao poder militar grandiloquente e a ocupação da Itália pelos espanhóis, caracterizando-se por sotaque espanhol. Era um tipo desacreditado e ridicularizado pelo público, assumindo a pose de conquistador de mulheres e constantemente rejeitado por elas, tornando-se uma figura bufa, ocupando um lugar de destaque na produção da comicidade. Era conhecido como Capitão Fracassa, Matamoro ou Spavento.


     No Brasil, o tipo aparece como o Cabo Setenta, em obras de Ariano Suassuna em "A Pena e a Lei"; em peças de Hermilo Borba Filho, na "Revista Forrobodó" de Luiz Peixoto e Carlos Bittencourt e na peça de Luís Marinho, "Viva o Cordão Encarnado". 


     No mundo ocidental, uma das formas mais antigas da atuação cômica de duplas e da tradição das máscaras como portadoras de tipos fixos surgiu no teatro popular romano, em particular em um gênero chamado farsa "atellana", surgido na cidade de Atella. A farsa se constituía em uma peça curta que, "embora escrita, deixava larga margem à atualidade política, lembrando a estrutura técnica do moderno sketch do teatro de revista: história linear rápida, de fácil compreensão e servindo como pretexto para sátira da atualidade", (Jacobi )


    Plauto, o mais popular dos comediógrafos romanos, autor de peças do gênero "Comédia Nova", tornou-se célebre por conseguir dar forma literária a estas manifestações antigas de teatro popular, dando-lhes feições de personagens. Acrescentando-lhes recursos de intrigas, surpresas, peripécias e quiproquós hilariantes. Enquanto na comédia grega a ênfase temática estaria na sátira social e política, na Comédia Nova ganharia destaque a crítica de costumes, com a representação de tipos que pontavam para certa caracterização individual, sem perder o foco em categorias sociais, caso de figuras como: o pai resmungão, o camponês, a cortesã, o debochado, o interesseiro, o avarento, o alcoviteiro, o parasita, aduladores, escravos e cozinheiros, típicos do mundo romano. 


(CLIQUE AQUI, para saber mais sobre o Teatro Romano)


    As peças "Os Dois Menecmos" e "O Anfitrião", de Plauto, são exemplares no modo como o recurso da duplicidade era utilizado. Em "Os dois Menecmos", dois gêmeos, separados após o nascimento, encontram-se, homens feitos, em uma mesma cidade. Dotados de temperamentos diversos - um malandro e outro mais ingênuo -, envolvem-se em confusões, nas quais as ações de um deles passam a ser atribuídas ao outro. Em "O Anfitrião", o Deus Júpiter, querendo conquistar Alcmêna, mulher de Anfitrião, que está na guerra, assume a aparência de seu marido, para tomar o seu lugar ao leito. A duplicação se repete no âmbito dos servos, com Mercúrio, criado de Júpiter, tomando a forma de Sósia, criado de Anfitrião. Os quiproquós ocorrem em diversos modos: tanto pelo contraste entre os dois níveis sociais representados (patrões e criados) quanto pela oposição entre deuses e homens, intensificados pelas peripécias provocadas pela diferença de identidades dos duplos. 

(Os Dois Menecmos)

     Moliére utilizou duplos de criados como artifício para o afloramento da comicidade. Além de uma releitura de "O Anfitrião" de Plauto, explorou este recurso em comédias como "As Malandragens de Scapino" e "O Avarento".
   Aliás, também Shakespeare tomaria Plauto como uma referência fundamental para a criação de suas comédias. Haja vista, sua peça, "A Comédia dos Erros", que fez uma releitura de "Os Dois Menecmos", de Plauto.
   Outro exemplo clássico do recurso de duplicidade encontra-se na genial peça do italiano Carlo Goldoni, "Arlequim", servidor de dois amos, na qual a duplicação recai sobre um só personagem, Arlequim, que se reveza como criado de dois patrões. A culminância fica com a cena do almoço, no 2° ato, em que ele é obrigado a se desdobrar e a correr de uma mesa à outra, para servir aos dois amos. A comicidade torna-se hilariante, pela velocidade com que o personagem consegue alternar suas ações, criando uma ilusão de duplicidade e de simultaneidade. 

(Arlequim sendo "dois")

(trecho de Arlequim - Carlo Goldoni)

   A atividade do ator e suas táticas de sobrevivência por meio do trabalho das duplas atravessariam todo o período da Idade Média, contrariando as predisposições das leis dos doutores da Igreja, que excomungavam os atores e o seu ofício, considerado obra do diabo, proibindo os cristãos de assistirem às representações. 

(veja AQUI, a Era Teatral durante a Idade Média)

   Desse modo, os atores nômades, na pele de mimos, acrobatas, bufões, trovadores, saltimbancos, jograis, menestréis, cantores, dançarinos e prestidigitadores, representariam uma multiplicidade de manifestações teatrais. Estas formas artísticas, configuradas no corpo do ator, como um fluxo de prazer e necessidade, conseguiriam, "profanamente", burlar os mecanismos de dominação da ideologia cristã, afirmando a vida, através dos sentidos e do riso satírico, contaminando os próprios liames do teatro religioso e seus rituais. 
    São inúmeras as fontes da criatividade popular que participaram do processo de fixação dos personagens da Commedia Dell'Arte. Os costumes de carnaval, os tipos explorados na comédia clássica, a ressonância das "atellanas" e de outras formas regionais de espetáculos, os mímicos das feiras e os bufões das cortes, os jograis e malabaristas, todos esses elementos dispersos abririam caminho para a criação de um gênero. Com sua gama de personagens fazia um resumo das atitudes psicológicas e sociais daquele mundo novo que se lançou com os ventos pós-renascentistas. 


ARLEQUIM
O "MOLECOTE" ITALIANO


   Os mais famosos representantes "zanni" eram o Arlequim e Brighella, uma dupla com características opostas e complementares, como explica Angela Materno: 


"O primeiro, Brighela, era o mais esperto, o mais astuto, aquele que inventava as trapaças e conduzia as artimanhas. Seus principais trunfos eram a agilidade do corpo e 
das ideias. O segundo, Arlequim, o personagem mais popular e conhecido da Commedia Dell'Arte, era ingênuo, tolo e atrapalhado. Ao contrário de Brighela, que premeditava e manobrava as situações, Arlequim embaralhava tudo sem querer e, no final, levava a surra e a culpa pelas maquinações de Brighela. Isto não significa que Arlequim também não pudesse aparecer, algumas vezes, com certa dose de malícia e engenhosidade. Afinal 
de contas, este e outros personagens sofreram transformações ao longo do tempo."


    A Columbina também era uma criada, considerada um Arlequim de saias pelos seus modos graciosos, sua agilidade corporal e sua esperteza na parceria das tramas. Namorava o Arlequim e fazia dupla com ele nas intrigas para proteger os namorados, que eram quase sempre filhos de seus patrões. A Columbina não se caracterizava por máscara e era conhecida também como "fantesca ou servetta", ou ainda pelos nomes de Pasquela, Ricciolina, Argentina, Coralina, Franceschina, Esmeraldina, Diamantina.   
    Na França, era a "soubrette", nome que chegou ao Brasil e se manteve no Teatro de Revista como uma determinada categoria de atriz, que representava a criada em alguns quadros de comédia ou cantava em pequenos números musicais. 
   Arlequim, no entanto, viria a ser a principal figura da Commedia Dell'Arte, sofrendo influências importantes dos costumes de sua época, mas ao mesmo tempo, incorporando em sua forma trapaças e artimanhas, aspectos animalescos e grotescos do diabo medieval. 


    Os estudos de Paolo Toschi sobre as máscaras demoníacas do carnaval italiano mostram que as "mascaradas" festas populares nas quais o diabo aparecia como chefe - extrapolam o folclore italiano, tendo sido constatadas sua presença desde o século IX, em território francês. As várias representações do diabo foram encontradas em festas que nos remetem a uma fonte comum, as celebrações dos ritos de calendários: mudanças de estações e inícios de novos ciclos. O diabo, portando máscara negra, se fazia anunciar ao som de sinos e guizos, cavalgando em animais que sopravam fogo e fumo pelas narinas. A aparição dessas divindades infernais e subterrâneas iria garantir segundo as crenças populares, a proteção da terra e a manutenção dos ciclos da vida. 
    Explica Toschi, a propósito das possíveis relações etimológicas entre Arlequim e a figura do diabo: 

"Um primeiro sinal da natureza demoníaca de Arlequim é dado pelo seu próprio nome. Embora sua etimologia seja muito discutida e não totalmente segura, podemos, no entanto, reconhecer em hellequin a raiz hell- inferno, espelhada ainda perfeitamente no alemão moderno hölle. Hellequin deu, por disseminação, em herlequin e, por outro lado, desde o século XIII, em Paris e seus arredores, verificou-se o fenômeno pelo qual o "e" diante do "r" passava normalmente para "a": daí a forma harlequin. Quanto à segunda parte da palavra, deve ser conduzida ao gótico kuni, latino genus. Foi feita também a aproximação com o erlkönig da mitologia germânica. Arlequim significa, então, o infernal ou o rei do inferno. Por outra estrada, um eminente estudioso, T. Siebs, partindo de uma raiz henne, que explicaria as formas pelas quais o Arlequim é indicado como hennequin, chega a estabelecer o significado originário de alma de morto [...]. A máscara de Arlequim sempre foi negra e com expressão diabólica, com aquilo que os franceses chamam hure, "cara azeda, descabelada e deformada", própria de uma fisionomia demoníaca e animalesca, ao mesmo tempo."


     Entretanto, a figura que ganharia popularidade no teatro dos cômicos italianos é a de um diabo desacreditado e cômico, resultado da fusão com o tipo teatral "zanni". O tipo secularizou-se, perdendo seu sentido sagrado / profano de origem, tornando-se uma figura laicizada e esquemática, que  sobreviveria nas máscaras de carnaval, mantendo, contudo, certos elementos diabólicos e cômicos. Nesse sentido, afirma Toschi:

"o Arlequim apresenta os "lazzi" mais obscenos. Gira os olhos, surpreende os homens com os abraços, salta sobre suas costas, se equilibra no ar, executa os jogos mais acrobáticos, dança, faz discursos bobos [...] range os dentes, arranha, assobia e "faz do cu trombeta" [...] o seu corpo é mais apto a se mover no ar que na terra; e o passo de dança o segue em qualquer contingência da vida."

   Arlequim é um tipo simbólico do teatro ocidental, tanto quanto o mítico Dioníso, da antiguidade grega, aos quais diversos encenadores e atores, ao longo do século XX (e ainda hoje), iriam buscar como arquétipos do teatro. Nesse sentido, o Arlequim tornou-se uma figura referencial como fonte de ensinamentos e de práticas seculares de atuação. É o caso do encenador russo, Meyerhold, que estudou os tipos da Commedia Dell'Arte no processo de sistematização de um treinamento físico conhecido como "biomecânica". 


    É possível reconhecer em diversas manifestações da cultura e da cena contemporânea traços cômicos que se inspiram e referendam as figuras da Commedia Dell'Arte. Aspectos que conseguem instaurar um elo de encanto e vitalidade na comunicação com as platéias das mais diversas camadas sociais. Nesses casos, a centralidade da cena se faz com a presença soberana do ator, como podemos constatar nas performances do italiano Dario Fo e em atores brasileiros como Antônio Nóbrega, Júlio Adrião e Roberto Birindelli, apenas para citar alguns artistas que vêm se destacam nesta vertente do cenário atual.
    São atores que apresentam em suas memoráveis performances ecos arlequinescos repletos de humor e  de poesia. 
   Porém, o fim desse tipo de comédia aconteceu pela falta de um texto, pois gerava um desequilíbrio no espetáculo, mas mesmo assim, foi de grande influência posteriormente mesmo sem ter deixado nenhum texto documentado.

(Dario Fo e suas mímicas)

(Dario Fo & a Commedia Dell´Arte)

(A Descoberta das Américas - Júlio Adrião)