quinta-feira, 2 de julho de 2015

Literatura Alemã Pós Guerra

· O Ressurgimento da Literatura e do
 Teatro na Alemanha pós Guerra


     Após a II Guerra Mundial, imperou o realismo socialista na República Democrática Alemã. Na Alemanha Ocidental, os escritores trataram de recuperar os 12 anos de isolamento cultural das tendências modernas.
   A criação de dois Estados alemães após a guerra dividiu também a literatura em duas. Somente em 1990, que a linha divisória começou a desaparecer.
   A produção literária na República Democrática Alemã esteve, desde o início, sob a doutrina do realismo socialista. Principalmente o teatro voltou-se para peças populares, com personagens de bom caráter.


   Os primeiros romances foram dedicados às inúmeras tragédias da guerra.
  Após uma idealização do universo do trabalhador, na década de 60 os escritores foram incentivados a conhecer melhor as indústrias, para produzirem obras mais realistas e superarem a dicotomia entre trabalho manual e intelectual. Por outro lado, tratou-se também de animar os trabalhadores a escrever.


  Christa Wolf é uma a escritora alemã-oriental que ficou famosa com seu livro de discurso pacifista "Cassandra" e foi a primeira tematizar a divisão alemã em "O Céu Dividido".  



(o Céu Dividido)

   Aos poucos, os temas históricos cederam lugar aos que se relacionavam com a própria vida dos autores. Jurek Becker tratou de forma crítica o cotidiano alemão oriental, e a nova subjetividade dos anos 70 refletiu-se na obra lírica de Sarah KirschNo gênero do romance histórico-mítico, destacou-se Stefan Heyn, com "O Relatório Rei Davi" e "Ahasver".

Jurek Becker

Sarah Kirsch

Stefan Heym

   Com suas sátiras políticas, o poeta e compositor Wolf Biermann caiu na mira do Stasi, o poderoso serviço de segurança do Estado. Sua expatriação para a Alemanha Ocidental, em 1976, teve sérias consequências para o cenário literário do país.

Wolf Biermann

Stasi


  Vários escritores seguiram os passos de Biermann e acabaram deixando o país, pressionados de alguma forma pelos órgãos repressivos do Estado, entre eles Reiner Kunze, Rolf Schneider, Erich Loest e Sarah Kirsch. Antes, já havia voltado às costas para o regime comunista Walter Kempowski, cujos diários resultaram nos nove volumes de sua "Crônica Alemã", que só seriam publicados nos anos 80, e Uwe Johnson, autor de "Suposições Sobre Jacó" e obras sobre a divisão alemã.

Reiner Kunze

Erich Loest


   Na literatura na República Federal da Alemanha logo após a guerra, os escritores trataram de encontrar um estilo claro e uma linguagem objetiva, distanciando-se dos exageros da retórica nacional-socialista, com seu estilo propagandístico. Representativo dessa fase é o poema “Inventário”, de Günter Eich. O próprio título marca a tendência de inventariar o que sobrou das cinzas, numa fase conhecida como "hora zero" ou "literatura dos escombros".



   A prosa realista de autores anteriores a 1933, como Arnold Zweig e Lion Feuchtwanger, serviu de orientação à nova geração de escritores, que procurou acertar o passo com as tendências modernas proscritas por 12 anos.



    A vivência da guerra foi um dos principais temas na década de 50. Essa literatura da primeira hora abordou, sob uma perspectiva existencialista, as experiências da Segunda Guerra, o retorno dos prisioneiros e os que a guerra deslocara, destacando-se o drama "Diante da Porta", de Wolfgang Borchert, e "Leviatã", de Arno Schmidt. Nelly Sachs "Nos Apartamentos da Morte" e Paul Celan "Papoula e Memória" tematizaram o horror do Holocausto.




Wolfgang Borchert



   Constituído por escritores e intelectuais, o Grupo 47 foi de grande importância na vida cultural da recém-criada República Federal da Alemanha. Como fórum de discussão literária, de comunicação e reflexão sobre a sociedade.


   Muitos escritores tematizaram o entusiasmo com o milagre econômico da reconstrução como forma de recalcar a responsabilidade pelos horrores da guerra e do nazismo. Entre eles, os suíços Max Frisch "Stiller", "Homo Faber" e Friedrich Dürrenmatt "A Visita da Velha Senhora", "Os Físicos" e Wolfgang Koeppen "A Estufa". Outros preferiram descrever os acontecimentos, sem tentar interpretá-los, como Jürgen Becker "Margens", Dieter Wellershoff "Um Dia Lindo" e Alexander Kluge "Processos de Aprendizagem com Fim Mortal".




Dieter Wellershoff




   A poesia concreta de Max Bense, Helmut Heissenbüttel e Franz Mon rompe com as tradições dos anos 20 e 30, ressaltando os aspectos sonoros e visuais de uma lírica centrada na própria linguagem. Na década de 60 da revolta estudantil e da politização, destaca-se o teatro documental de Rolf Hochhuth e Heinar Kipphardt e o gênero da reportagem política de Günter Wallraff.



Günter Wallraff

 Helmut Heissenbüttel

Max Bense

  Em busca de novas formas literárias dedicaram-se principalmente Hans Magnus Enzensberger "Morte da Literatura" e Peter Weiss, que entrelaçou a reflexão política com a construção biográfica em sua "Estética da Resistência", além de trilhar novos caminhos no teatro com os múltiplos espelhamentos da peça conhecida como “Marat-Sade”. Peça essa, escrita em 1963, ambientada em um asilo francês no auge da Era Napoleônica. A peça recebeu quatro Tony Awards. Incorporando elementos dramáticos característicos de AntoninArtaud (clique aqui para saber mais sobre o Teatro da Crueldade de Artaud) e Bertolt Brecht (clique aqui para saber mais sobre o Teatro de Bretch),  é uma representação sangrenta e implacável da luta de classes e do sofrimento humano, que pergunta se a verdadeira revolução vem para mudar a sociedade ou mudar a si mesmo.

 Hans Magnus Enzensberger


Marat-Sade


   Com a austríaca Ingeborg Bachmann "O Tempo Prolongado", a literatura em língua alemã torna-se intimista e subjetiva. A temática feminista surge nos anos 70, quando também se estabelece o romance histórico ou biográfico "Peter Härtling Hölderlin".
   A Alemanha também é agitada por Rainer Werner Fassbinder e Franz Xaver Kroetz com suas peças teatrais provocantes e muitas vezes obscenas.


Rainer Werner Fassbinder

Franz Xaver Kroetz

   Heiner Müller "Germania, Morte em Berlim" começa a traçar seus burlescos panoramas de época na tradição de Bertolt Brecht e Antonin Artaud e, em 1979, Michael Ende escreve um clássico da literatura infanto-juvenil, "A História sem Fim". Martin Walser destaca-se com seu romance "Um Cavalo em Fuga", que tem como tema a "midlife crisis".


 Heiner Müller



   Já os anos 80 estão sob o signo da reflexão sobre a história da família, enquanto no teatro se destaca Botho Strauss "O Grande e o Pequeno”, "O Quarto e o Tempo".
   Na lírica fazem sucesso Ulla Hahn e Durs Grünbein. Walter Kempowski publica o monumental "Echolog", um diário coletivo, em que reduz seu papel como autor à mera montagem de suas anotações e inúmeros documentos e testemunhos da Segunda Guerra.
(teaser espetáculo - Botho Strauss)





   Merecem ainda menção na literatura alemã das duas últimas décadas do século XX: Patrik Süskind "O Perfume", Ingrid Noll, Uwe Timm, Reiner Kunze, Peter Schneider, Katja Behrens, Sten Nadolny, Thorsten Becker, Doris Dörrie, Arnold Stadler, Friedrich Christian Delius e Ingo Schulze.

   Heinz Konsalik, falecido em 1999, pode ser considerado o escritor alemão de maior sucesso do pós-guerra. O autor de best-sellers, entre eles "O Médico de Estalingrado", escreveu 155 romances traduzidos para 42 línguas.

Heinz G. Konsalik



terça-feira, 30 de junho de 2015

Antígona de Sófocles para Atualidade

J. Anouilh Trás Para o Século XX 
"Antígona" de Sófocles



   Quando, em 1943, J. Anouilh apresentava a sua Antígona, obedecia a um princípio que Bertold  Brecht, também ele autor de uma nova Antígona (1948), sintetizou nestas palavras:

“Se escolhemos Antígona para a presente tentativa teatral foi tão só porque a sua temática pode conferir-lhe uma certa atualidade e a sua forma propor interessantes problemas.”

  Esta era a perspectiva de um cidadão europeu que olhava em volta para um continente em ruínas. Anouilh do lado francês, na iminência do desfecho libertador da Segunda Guerra Mundial.    



   Era preciso reformular um tema que pareceu sugestivo para a “tradução” em cena das circunstâncias do momento, retomando um original grego paradigmático da corrosão pessoal e social, que o exercício de um poder absoluto e tirânico acarreta.
   Existem dois objetivos primordiais: em primeiro lugar, adotar uma estratégia dramática que seja capaz de ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço e garantir a compreensão e adesão de um auditório francês do séc. XX (1943) perante um original grego do século V a. C., depois ajustar o sentido de um drama servido aos Atenienses, justamente em fase de um pós-guerra e da estabilização de uma nova ordem social, às condições, ao mesmo tempo similares e distintas, que eram as da Europa dos anos 1940 do século que findou.



   A obra conta a história de Antígona, que deseja enterrar o seu irmão Polinice, que atentou contra a cidade de Tebas, mas o tirano da cidade, Creonte, promulgou uma lei impedindo que os mortos que atentaram contra a lei da cidade fossem enterrados, o que era uma grande ofensa para o morto e sua família, pois a alma do morto não faria a transição adequada ao mundo dos mortos. Antígona, enfurecida, vai então sozinha contra a lei de uma cidade e enterra o irmão, desafiando todas as leis da cidade, ela então é capturada e levada até Creonte, que sentencia Antígona a morte, não adiantando nem os apelos de Hemon, filho de Creonte e noivo de Antígona, que clama ao pai pelo bom senso e pela vida de Antígona, pois ela apenas queria dar um enterro justo ao irmão.
    Hemon briga com Creonte e então Antígona é levada a morte, numa tumba aonde ficará até morrer. Aparece então Tirésias, o adivinho, que avisa a Creonte que sua sorte está acabando, pois o orgulho em não enterrar Polinice acabará destruindo seu governo. Antes de poder fazer algo, Creonte descobre que Hemon, seu filho, se matou, desgostoso com a pena de morte de Antígona. Eurídice, desiludida pela morte do filho também se mata para desespero de Creonte, que ao ver toda sua família morta se lamenta por todos os seus atos, mas principalmente pelo ato de não ter atendido o desígnio dos deuses, o que lhe custou a vida de todos aqueles que lhe eram queridos.

(Antígona)


  Da estruturação dramática, há dois pormenores formaiso prólogo e a intervenção coral; Anouilh adapta às exigências específicas do contexto que envolve a sua produção. No entanto, vemos levar a possibilidade de abertura ser mais ou menos independente em relação ao desenvolvimento da intriga – pela natureza da personagem que a profere, pela índole do seu conteúdo, pela maior ou menor coesão que tem com o desenrolar da ação – até às suas últimas consequências.
    A identidade da personagem "prologízousa" anula-se até ao estrito formalismo técnico, encarnada no próprio Prólogo. Os elementos que dão substância de abertura são desta vez convocados à presença do público. Uma primeira rubrica de cena ilumina-nos sobre o efeito desejado: as personagens, ao fundo, mantêm uma vida própria, expressa em pequenos gestos – “conversam, fazem renda, jogam as cartas” – enquanto “o prólogo se destaca e avança”. E não é só em cena que se destaca, mas também da intriga de uma forma mais radical, ao dirigir ao público uma mensagem na base da quebra da ilusão cênica – “atentai!”, é o apelo de abertura. Logo o prólogo é claramente voltado para o extracênico, não só nos objetivos como na forma adotada.

(Antígona & Polinice)

   Procede-se, em seguida, à apresentação ou caracterização sumária das personagens e dos traços essenciais, de aspecto, atitude e caráter, uma hierarquização que sugere o seu peso relativo na ação.
   Como acontecia também no teatro grego, onde o monólogo de abertura era um fator de acerto entre o mito tradicional e a versão do momento nas suas opções fundamentais, também Anouilh sublinha alterações essenciais na sua releitura; torna-se, no seu caso, particularmente evidente o que é o respeito pela tradição sofocliana, a máscara colada ao nome – “chama-se Antígona e é necessário que desempenhe o seu papel até ao fim” em confronto com um tom muito distinto, em relação aos modelos antigos, que é o da sua criação. Sobre os traços estruturantes, que salvaguardam uma dependência fundamental com Sófocles, vai intervir uma cosmética de caracterização que dá ao produto final um outro sentido. Um processo da versatilidade dos mitos e a remodelação da tradição teatral.



   A prioridade dada a Antígona não deixa dúvidas sobre o protagonismo reconhecido à
personagem, porque é a sua história que se vai representar. A caracterização começa de fora para dentro – “Antígona é aquela rapariga magra que está sentada, ao fundo, e que não diz nada. Olha em frente. Pensa”, sujeita a um pormenor físico próprio da natureza feminina da personagem a uma imobilidade penumbrosa como de alguém ainda informe à espera de uma moldagem que a traga à luz em traços nítidos, a um isolamento e falta de convivência com as que a cercam, a um certo depauperamento face à vida.
   O espectador atento é chamado a prever que, se está assegurado o "agôn tradicional" entre Antígona e Creonte, a “heroína” reveste outro desenho, que lhe advém de uma fragilidade que é, desta vez, condicionadora da capacidade física e da vontade.
   Seguindo o padrão da estrutura sofocliana, que em certa medida vai retomar a primeira ruptura promovida neste esquema programático, é com Ismena. A divergência entre as duas irmãs pinta-se agora de cores vivas, destacadas, humanas se quisermos, porque Ismena é, numa imagem inicial, a moça “que conversa e ri com um rapaz”. O que significa que, antes das divergências que os acontecimentos aprofundam, havia outras, mais íntimas, que radicam no próprio contraste de duas criaturas no feminino. Entre a que sentada, silenciosa, pensa e olha o futuro, e a que descontraidamente conversa com um rapaz – a loira, bela e feliz Ismena. Desenha-se assim, uma perspectiva de vida bifurcada, radicalmente divergente a que a dicotomia “normalidade / anormalidade” poderia dar uma expressão adequada.

(áudio em espanhol)


   Sobre o problema, central na tragédia de Sófocles, do enterramento de Polinices, entre as filhas de Édipo, tão distintas pela natureza, outros conflitos, pessoais e comezinhos, vigoram. O masculino nesta polêmica entre raparigas veste a pele de Hemon, que “está noivo de Antígona”, quando “tudo o aproximava de Ismena”. Ao noivo de Antígona, a quem o tragediógrafo grego reservava, para as cenas iniciais, uma simples menção, e que, portanto, apenas à distância, interferia na condenação de Antígona, Anouilh abre um espaço de atuação, para humanizar o conflito entre as duas irmãs. Percebemos, no conjunto, todo um efeito de desconcentração, de multiplicação de incidentes da rotina cotidiana, que despem de grandeza os “heróis” da história, para lhes reforçarem o retrato de linhas puramente “realistas” e vulgares.
 Creonte incorpora o próprio clímax da intriga, como aquele com qual a inconvivialidade de Antígona se radicaliza. Naturalmente que lhe cabe exercer o poder, mas sobre o condutor de povos, Anouilh imprime também alguns traços de uma caracterização cosmética; os “cabelos brancos” e as “rugas” denunciam nele a fadiga de alguém que chegou ao poder pela força das circunstâncias e de alguma inércia ou acomodação. Porque também Creonte tinha, antes de revestir o papel que a tradição lhe destinou, uma vida própria, de um aristocrata elegante e requintado perante a vacatura do trono após a morte de Édipo e dos seus filhos, o que tornou o aristocrata num funcionário. É óbvia alguma fadiga que por vezes se apodera dele, uma vaga consciência da inutilidade e do vazio do seu papel; mas o sentido do dever e, sobretudo os condicionalismos de um coletivo que sobre ele exerce uma pressão esmagadora empurram-no sem piedade. Creonte é um sujeito que, à falta de iniciativa, funciona de uma forma mais ou menos mecânica, sob a exigência da necessidade.

(Creonte)


   Três tipos de personagem secundária completam o conjunto em cena: duas figuras femininas, Eurídice, a tia, e a ama das filhas de Édipo, de que Anouilh aviva os traços.
   Eurídice é “a velhota” que faz renda, revestindo a imagem de uma passividade subserviente e rotineira. Nos cabelos brancos e nessa eterna renda desenha-se toda uma vida, apagada, silenciosa. Na peça, a sua intervenção é claramente definida: fará renda até se levantar para ir morrer no recôndito do palácio. Eurídice esconde uma alma resplandecente, “é boa, digna, afetuosa”. Vive próxima das servas, em particular de uma ama, que com ela partilha a discrição, mas também o carinho pelos que são ainda mais frágeis do que as duas mulheres, as moças da família e os pobres da cidade.também um mensageiro, que tem o seu papel predefinido: o de anunciar morte e sofrimento. Vive os desgostos da sua missão, tendo parte na dor que está condenado a transmitir, e por isso é uma espécie de sombra da morte, pálido, ensimesmado, solitário. Por fim os guardas, os executores das ordens régias, que ocupam o fim da linha da subserviência humana em sociedade. O seu padrão de vida é o do anonimato; têm vigor mas diluem-se num grupo, não têm individualidade nem rasgos de consciência. Sob esse anonimato são invertebrados, apenas obedecem a ordens, insensíveis ao paradoxo dos atos que são chamados a executar.



   A terminar, o Prólogo passa de uma prioridade absoluta dada ao desenho das personagens para o estabelecimento dos contornos da ação que as irá pôr em movimento. São tradicionais as principais etapas da intriga que as condicionam: o fratricídio dos dois herdeiros de Édipo, incompatíveis nas suas pretensões ao poder; a salvação de Tebas articulada com a perdição dos seus senhores que persiste à assimetria nos funerais que a cidade lhes destina, acrescida da proclamação de um castigo para quem tentar desobedecer. Anouilh deixa patente o efeito essencial que pretende obter que são mais os homens do que os acontecimentos colocando perante o público do seu tempo.
   Seu porta-voz o coro, sem dele se dar qualquer especificação em termos de sexo, idade ou estatuto, o torna meramente funcional, e essa função mais próxima de uma parábase cômica do que de um estásimo de tragédia. As suas palavras constituem uma reflexão dirigida apenas ao extracênico, sem qualquer implicação direta sobre os acontecimentos.



   A vida, como a tragédia, constrói-se e avança no seu padrão permanente. O paralelo com o que a literatura veio a inventar como “drama” burguês nada tem da seriedade da tragédia; admite a aventura, o imprevisível, como também a esperança de salvação e o "happy end". A tragédia não. Nela não existem bons nem maus, se culpa existe é da própria condição humana na sua imperfeição essencial.
   É niilista (Niilismo - "é a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao “porquê”. Os valores tradicionais depreciam-se e os "princípios e critérios absolutos dissolvem-se". "Tudo é sacudido", posto radicalmente em discussão. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro".) a visão que Anouilh tem do herói trágico, talvez fruto das circunstâncias esmagadoras que o rodeiam. O seu “herói” não ergue a cabeça para olhar de frente o destino que o desafia. Rende-se, como um rato, deixa-se esmagar, não tem grandeza. O que torna a pequena infelicidade de cada um num paradigma humano, o que dá dignidade e glória à insignificância de cada criatura, o que desencadeia, acima do chão raso da vida, forças ocultas e poderosas, anônimas, distantes e esmagadoras. Mais do que ação, tragédia é a palavra, um convite a aprender pelo sofrimento e a verbalizar o sentido oculto da contingência humana.
  Consideremos agora, em traços fundamentais, a opção impressa por Anouilh sobre o velho mito e suas leituras dramáticas determinantes. Citando Brecht, Breda Simões recorda no seu prefácio:

"A resistência simbolizada pela figura central da tragédia de Sófocles não tem comum medida e imediata relação com a resistência francesa à ocupação ou com a resistência alemã à opressão. O que os dois dramaturgos pretenderam foi apresentar a trágica ambiguidade de uma situação concreta – um tipo de tragédia diferente da grega, onde o homem já se não encontra cega e inevitavelmente submetido a um destino, abstrato e inflexível, mas se situa num plano concreto no qual o destino do homem é o homem."



   Anoilh concentra o clímax da sua ação no confronto entre Antígona e Croente. Mas, em torno desse conflito simbólico entre o individual e o coletivo, aprofunda, numa sequência de cenas, a personalidade de cada um dos contendores, multiplica-lhes os traços, rodeia-os de outras figuras com que contracenam, concretiza-lhes a natureza e a humanidade. Introduz assim, de um modo claro, o dado psicológico, em detrimento do que em Sófocles era essencial, a ordem superior do mundo perante a grandeza que, sob a debilidade, existe no Homem. O efeito final de uma e de outra opção é, em resultado, contraditório. Ama tem a função, que lhe é específica, de substituir o papel materno, consumada a morte de Jocasta. É sua preocupação, como a de qualquer mãe atenta, proteger as duas órfãs, Antígona e Ismena, preocupar-se com elas, defendê-las, porque é também pelos pequenos gestos que o afeto se exprime. Entre as duas, a ama nutre uma preferência por Antígona lhe retribua a dedicação – este é mesmo, na sua alma arredia, o único afeto.  Anouilh, alterando a estrutura sofocliana, anterioriza, na medida em que nele radica a primeira Antígona, a criança que começa a desenvolver afeições. Apesar das flagrantes incompreensões que resultam do choque entre o espírito “concreto, comum” da velha mulher em contraste com a excepcionalidade de Antígona, a ama é, mesmo assim, a única interlocutora para os afetos profundos e as carícias de que é capaz a filha de Édipo. Anouilh valoriza alguns pormenores pessoais das duas interlocutoras.



    A oposição tradicional entre as duas neste momento decisivo alarga-se, como uma força determinada pela própria natureza, à infância, ao “sempre” das suas vidas. E tem por motivos pormenores que, mesmo se superficiais, são marcantes. Ismena sempre foi mais bela, mais descontraída, normal, características que Antígona tende a invejar nessa irmã, que Anouilh converteu na mais velha.
    Exatamente como mais velha, fica-lhe bem assumir a voz da prudência e da sensatez. Com a rejeição que manifesta de aderir ao projeto de Antígona, Ismena traz ao contraste físico, que até aqui centrou as diferenças visíveis, um outro, íntimo, o do entendimento que cada um tem do que seja “senso”. Este é o ponto central do "agôn" entre as duas irmãs, que não passa de uma espécie de ensaio do que se seguirá com Creonte. “Compreender” é a palavra que as divide, desde crianças; um “compreender” que, para Ismena, significa “aceitar” as regras, o que Antígona lê como “conformismo”. A esse poder tirânico, Antígona reage nos pequenos gestos do dia a dia – tocar na água fria e molhar o lajedo, meter as mãos na terra e sujar o vestido, dar tudo o que se tem ao primeiro mendigo que aparece, beber água fria quando se está quente –, como nas grandes decisões do seu trajeto. É para um desvio equivalente, transposto para a ordem social e política de Tebas, que agora se prepara. Ao contrário de Ismena, subjugada à ordem estabelecida pelos convencionalismos em vigor, Antígona ergue-se contra o rei, antes de mais, como encarnação dessa disciplina, mas, através dele, contra toda a comunidade.



   No fim desta linha coesa da multidão anônima, estarão os guardas, o paradigma da sujeição amorfa e inconsciente. É contra esta degradação hierarquizada, que provém do rei e prossegue até aos mais humildes executantes da sua vontade, que Antígona reage. A nova Antígona é uma criatura humana, que não dispõe de uma coragem heróica, que é sensível ao impulso da vida e pequena para enfrentar a grandeza do ato que prepara. O que a move é nesta nova versão, o inconformismo, a incompatibilidade, não com a vida em si mesma, mas com um certo padrão de vida, que liminarmente rejeita.


    E esta mesma atitude que se vai impor na cena seguinte, entre Antígona e Hemon, o noivo. Este é um encontro que não existe em Sófocles, onde a relação de Hemon com Antígona importa mais para a avaliação da ordem de Creonte do que nos seus contornos afetivos. 
   Anouilh, ela vem na linha de um conjunto de traços que acentuam o sentimental e o psicológico. Perante Hemon, o primeiro movimento é o do afeto, que se exprime num abraço efusivo; mas logo a contradição determinante na alma de Antígona fala mais alto e inicia a demolição do sonho de uma vida em comum. Porque, também neste caso, a “normalidade” de uma relação conjugal não lhe serve. 

(Hemon)

   Um diálogo extenso entre os guardas, apavorados com a transgressão que detectaram, e o soberano põe em cena, em tons fortes, a arquitetura da submissão em que assenta a concepção de uma cidade como Tebas. Os depoimentos feitos pelos guardas, insistentes em questões burocráticas e hierárquicas. De uma forma prosaica, a máquina opressiva em que a ação, agora coletiva, se move.
    Anouilh lança um objeto que, na sua insignificância, altera todo o sentido do momento: a mão que se opôs a Creonte não vem do além, mas de uma muito humana memória de infância. O alívio que desanuviou as apreensões do corpo de guarda é também, nos comentários vulgares que lhe são permitidos, a imagem de uma anulação temerosa, que, satisfeita a imposição do chefe, se expande em festejos, à sombra triste das tabernas. De forma indireta, este diálogo, no seu próprio grotesco, contribui para preparar o perfil autoritário do ditador, cuja chegada está iminente.


  
    Anouilh reserva, no entanto, ao seu público, uma surpresa na caracterização do seu Creonte. É o conciliador, brando, mais disposto a salvar Antígona do que lhe parece um ato irrefletido do que a condená-la, apesar de continuar no seu papel de salvaguarda da ordem do Estado. Mandar matar Antígona seria um rasgo de tragicidade. O próprio Creonte é demasiado prosaico e objetivo para ser um herói dominador. É verdade que a tradição lhe destinou, na história, o papel antipático; mas o autor despiu-o, desta vez, da determinação do “clássico e bruto tirano” e fê-lo hesitar. Nela o novo monarca entrevê o “orgulho” paterno, aquele desejo de grandeza e de heroicidade próprio de quem encara “a desgraça humana como demasiado pequena” e precisa de “afrontar o destino e a morte”. Esses são os que agem de acordo com o nome que usam, o de Édipo ou Antígona, e a sua eterna ressonância trágica. A beleza que os impõe está no aderir sem margem para esperança à sua tragédia; é então que se revestem de um esplendor sobre-humano.
    Creonte que inaugura em Tebas uma nova dinastia, a dos “príncipes sem história”, ou seja, na transposição moderna da tragédia, a heroicidade de vestir a pele de um ser humano vulgar. Ele mesmo define os traços elementares da sua nova personalidade: 

“Chamo-me apenas Creonte, graças a Deus. Tenho os pés bem fincados na terra, as mãos enterradas nos bolsos, e, já que sou rei, resolvi, com menos ambição do que o teu pai esforçar-me por tornar menos absurda a ordem deste mundo, se isso for possível. Não é uma aventura, é uma profissão diária e nem sempre agradável”. É, portanto, no pressuposto de uma objeção entre duas criaturas mais reais e mais próximas que se baseia o "agôn", onde Antígona apregoa que defende o que julga ser o seu “dever” e Creonte o que entende por “sua lei”.

(Paulo Autran como Creonte)


   A grande prova a que Creonte se vê exposto é a de defrontar-se com a ambiguidade de uma situação, cujo controle lhe escapa. Cabe-lhe “escolher” – e a opção constitui o seu grande drama – entre os deveres funcionais de um burocrata e os sentimentos de um tio que quer salvar a sobrinha. Submisso às imposições de um Estado também ele em decadência; torna-se, por isso, um cínico, e apesar de “demasiado sensível para dar um bom tirano”, mesmo assim condenará Antígona por subserviência ou hesitação.



   Anouilh desmonta agora o papel que sempre coube a Polinices. O cadáver exposto reduz-se, de prova de um delito contra a obediência devida a Thémis, a um pedaço de carne malcheiroso, que se algum sentido tem é de ordem política. É sem convicção que atua, levado apenas pela necessidade de fomentar, com um paradigma como outro qualquer, a ordem em sua volta. É o que ele chama “ossos do ofício”, as sequelas do exercício de um poder que Creonte destaca de si mesmo, como uma mera profissão. Dos dois irmãos mais velhos que na infância lhe destruíam os brinquedos e eram motivo de constantes disputas. Etéocles e Polinices eram apenas dois crápulas, desajuizados primeiro na irresponsabilidade juvenil, criminosos mais tarde, no seu desejo de descer o pai do poder de Tebas para darem satisfação a uma ambição condenável. Os funerais de Estado com que Creonte distinguiu Etéocles não passaram de uma fachada política a esconder apenas uma triste verdade; o herói não era melhor do que o traidor. Nem sequer se soube, após a luta fratricida, a qual dos dois pertenciam os despojos, a abandonar ou a sepultar. Anouilh destrói por completo a ideia do dever perante os mortos, de qualquer ligação sentimental para com Polinices, ou de uma oposição entre o defensor e o atacante de Tebas.



   Sobre Creonte que a ação sobretudo se centra. Como na tradição, sobre ele recaem em todos os tons, as recriminações: de Hemon, que brada contra a execução da noiva e o rasgar da imagem que reservava de um pai atento e compreensivo; de Eurídice que pousa finalmente a malha, a ocupação de uma vida inteira, para morrer, refugiada no silêncio. E mergulha então na sua rotina que é, na existência que escolheu, o seu inferno.
   São estes os novos contornos de uma Antígona que Anouilh conformou à experiência do século XX.

    Mais do que a “desadaptação” de Antígona será talvez Creonte que mais fala à sensibilidade moderna. É nele que encarna a existência possível num mundo em decadência, é ele o homem concreto esmagado por múltiplas contradições. Mesmo se inegavelmente conformista, luta ainda diante das opções impostas pela violência diária, sendo o seu trágico a submissão, a falta da grandeza utópica dos heróis.

(Os vídeos abaixo não está em português, mas vale a pena dar uma olhada)