J.
Anouilh Trás Para o Século XX
"Antígona" de Sófocles
Quando, em 1943, J. Anouilh
apresentava a sua Antígona, obedecia a um princípio que Bertold Brecht, também ele autor de uma nova Antígona
(1948), sintetizou nestas palavras:
“Se escolhemos
Antígona para a presente tentativa teatral foi tão só porque a sua temática
pode conferir-lhe uma certa atualidade e a sua forma propor interessantes
problemas.”
Esta era a perspectiva de um
cidadão europeu que olhava em volta para um continente em ruínas. Anouilh do
lado francês, na iminência do desfecho libertador da Segunda Guerra
Mundial.
Era preciso reformular um tema
que pareceu sugestivo para a “tradução” em cena das circunstâncias do momento,
retomando um original grego paradigmático da corrosão pessoal e social, que o
exercício de um poder absoluto e tirânico acarreta.
Existem dois objetivos primordiais: em
primeiro lugar, adotar uma estratégia dramática que seja capaz de ultrapassar
as barreiras do tempo e do espaço e garantir a compreensão e adesão de um
auditório francês do séc. XX (1943) perante um original grego do século V a.
C., depois ajustar o sentido de um drama servido aos Atenienses, justamente em fase
de um pós-guerra e da estabilização de uma nova ordem social, às condições, ao
mesmo tempo similares e distintas, que eram as da Europa dos anos 1940 do
século que findou.
A obra
conta a história de Antígona, que deseja enterrar o seu irmão Polinice, que
atentou contra a cidade de Tebas, mas o tirano da cidade, Creonte, promulgou
uma lei impedindo que os mortos que atentaram contra a lei da cidade fossem
enterrados, o que era uma grande ofensa para o morto e sua família, pois a alma
do morto não faria a transição adequada ao mundo dos mortos. Antígona,
enfurecida, vai então sozinha contra a lei de uma cidade e enterra o irmão,
desafiando todas as leis da cidade, ela então é capturada e levada até Creonte,
que sentencia Antígona a morte, não adiantando nem os apelos de Hemon, filho de
Creonte e noivo de Antígona, que clama ao pai pelo bom senso e pela vida de
Antígona, pois ela apenas queria dar um enterro justo ao irmão.
Hemon
briga com Creonte e então Antígona é levada a morte, numa tumba aonde ficará
até morrer. Aparece então Tirésias, o adivinho, que avisa a Creonte que sua
sorte está acabando, pois o orgulho em não enterrar Polinice acabará destruindo
seu governo. Antes de poder fazer algo, Creonte descobre que Hemon, seu filho,
se matou, desgostoso com a pena de morte de Antígona. Eurídice, desiludida pela
morte do filho também se mata para desespero de Creonte, que ao ver toda sua
família morta se lamenta por todos os seus atos, mas principalmente pelo ato de
não ter atendido o desígnio dos deuses, o que lhe custou a vida de todos
aqueles que lhe eram queridos.
(Antígona)
Da estruturação dramática, há
dois pormenores formais – o prólogo e a intervenção coral; Anouilh adapta às
exigências específicas do contexto que envolve a sua produção. No entanto, vemos
levar a possibilidade de abertura ser mais ou menos independente em relação ao
desenvolvimento da intriga – pela natureza da personagem que a profere, pela
índole do seu conteúdo, pela maior ou menor coesão que tem com o desenrolar da
ação – até às suas últimas consequências.
A identidade da personagem
"prologízousa" anula-se até ao estrito formalismo técnico, encarnada
no próprio Prólogo. Os elementos que dão substância de abertura são desta vez
convocados à presença do público. Uma primeira rubrica de cena ilumina-nos
sobre o efeito desejado: as personagens, ao fundo, mantêm uma vida própria,
expressa em pequenos gestos – “conversam, fazem renda, jogam as cartas” –
enquanto “o prólogo se destaca e avança”. E não é só em cena que se destaca,
mas também da intriga de uma forma mais radical, ao dirigir ao público uma
mensagem na base da quebra da ilusão cênica – “atentai!”, é o apelo de
abertura. Logo o prólogo é claramente voltado para o extracênico, não só nos
objetivos como na forma adotada.
(Antígona & Polinice)
Procede-se, em seguida, à
apresentação ou caracterização sumária das personagens e dos traços essenciais,
de aspecto, atitude e caráter, uma hierarquização que sugere o seu peso
relativo na ação.
Como acontecia também no
teatro grego, onde o monólogo de abertura era um fator de acerto entre o mito
tradicional e a versão do momento nas suas opções fundamentais, também Anouilh
sublinha alterações essenciais na sua releitura; torna-se, no seu caso,
particularmente evidente o que é o respeito pela tradição sofocliana, a máscara
colada ao nome – “chama-se Antígona e é necessário que desempenhe o seu papel
até ao fim” em confronto com um tom muito distinto, em relação aos modelos
antigos, que é o da sua criação. Sobre os traços estruturantes, que
salvaguardam uma dependência fundamental com Sófocles, vai intervir uma
cosmética de caracterização que dá ao produto final um outro sentido. Um
processo da versatilidade dos mitos e a remodelação da tradição teatral.
A prioridade dada a Antígona
não deixa dúvidas sobre o protagonismo reconhecido à
personagem, porque é a sua história que se vai representar. A
caracterização começa de fora para dentro – “Antígona é aquela rapariga magra
que está sentada, ao fundo, e que não diz
nada. Olha em frente. Pensa”, sujeita a um pormenor físico próprio da natureza
feminina da personagem a uma imobilidade penumbrosa como de alguém ainda informe
à espera de uma moldagem que a traga à luz em traços nítidos, a um isolamento e
falta de convivência com as que a cercam, a um certo depauperamento face à
vida.
O espectador atento é chamado a
prever que, se está assegurado o "agôn tradicional" entre Antígona e
Creonte, a “heroína” reveste outro desenho, que lhe advém de uma fragilidade
que é, desta vez, condicionadora da capacidade física e da vontade.
Seguindo o padrão da estrutura
sofocliana, que em certa medida vai retomar a primeira ruptura promovida neste
esquema programático, é com Ismena. A divergência entre as duas irmãs pinta-se
agora de cores vivas, destacadas, humanas se quisermos, porque Ismena é, numa
imagem inicial, a moça “que conversa e ri com um rapaz”. O que significa que,
antes das divergências que os acontecimentos aprofundam, havia outras, mais
íntimas, que radicam no próprio contraste de duas criaturas no feminino. Entre
a que sentada, silenciosa, pensa e olha o futuro, e a que descontraidamente
conversa com um rapaz – a loira, bela e feliz Ismena. Desenha-se assim, uma
perspectiva de vida bifurcada, radicalmente divergente a que a dicotomia
“normalidade / anormalidade” poderia dar uma expressão adequada.
(áudio em espanhol)
Sobre o problema, central na tragédia de
Sófocles, do enterramento de Polinices, entre as filhas de Édipo, tão distintas
pela natureza, outros conflitos, pessoais e comezinhos, vigoram. O masculino
nesta polêmica entre raparigas veste a pele de Hemon, que “está noivo de
Antígona”, quando “tudo o aproximava de Ismena”. Ao noivo de Antígona, a quem o
tragediógrafo grego reservava, para as cenas iniciais, uma simples menção, e
que, portanto, apenas à distância, interferia na condenação de Antígona,
Anouilh abre um espaço de atuação, para humanizar o conflito entre as duas
irmãs. Percebemos, no conjunto, todo um efeito de desconcentração, de
multiplicação de incidentes da rotina cotidiana, que despem de grandeza os
“heróis” da história, para lhes reforçarem o retrato de linhas puramente
“realistas” e vulgares.
Creonte
incorpora o próprio clímax da intriga, como aquele com qual a inconvivialidade
de Antígona se radicaliza. Naturalmente que lhe cabe exercer o poder, mas sobre
o condutor de povos, Anouilh imprime também alguns traços de uma caracterização
cosmética; os “cabelos brancos” e as “rugas” denunciam nele a fadiga de alguém
que chegou ao poder pela força das circunstâncias e de alguma inércia ou
acomodação. Porque também Creonte tinha, antes de revestir o papel que a
tradição lhe destinou, uma vida própria, de um aristocrata elegante e
requintado perante a vacatura do trono após a morte de Édipo e dos seus filhos,
o que tornou o aristocrata num funcionário. É óbvia alguma fadiga que por vezes
se apodera dele, uma vaga consciência da inutilidade e do vazio do seu papel; mas
o sentido do dever e, sobretudo os condicionalismos de um coletivo que sobre
ele exerce uma pressão esmagadora empurram-no sem piedade. Creonte é um sujeito
que, à falta de iniciativa, funciona de uma forma mais ou menos mecânica, sob a
exigência da necessidade.
(Creonte)
Três tipos de personagem
secundária completam o conjunto em cena: duas figuras femininas, Eurídice, a
tia, e a ama das filhas de Édipo, de que Anouilh aviva os traços.
Eurídice é “a velhota” que faz
renda, revestindo a imagem de uma passividade subserviente e rotineira. Nos
cabelos brancos e nessa eterna renda desenha-se toda uma vida, apagada,
silenciosa. Na peça, a sua intervenção é claramente definida: fará renda até se
levantar para ir morrer no recôndito do palácio. Eurídice esconde uma alma
resplandecente, “é boa, digna, afetuosa”. Vive próxima das servas, em
particular de uma ama, que com ela partilha a discrição, mas também o carinho
pelos que são ainda mais frágeis do que as duas mulheres, as moças da família e
os pobres da cidade. Há também um mensageiro, que tem o seu papel predefinido:
o de anunciar morte e sofrimento. Vive os desgostos da sua missão, tendo parte
na dor que está condenado a transmitir, e por isso é uma espécie de sombra da
morte, pálido, ensimesmado, solitário. Por fim os guardas, os executores das
ordens régias, que ocupam o fim da linha da subserviência humana em sociedade.
O seu padrão de vida é o do anonimato; têm vigor mas diluem-se num grupo, não
têm individualidade nem rasgos de consciência. Sob esse anonimato são invertebrados, apenas obedecem a ordens,
insensíveis ao paradoxo dos atos que são chamados a executar.
A terminar, o Prólogo passa de
uma prioridade absoluta dada ao desenho das personagens para o estabelecimento
dos contornos da ação que as irá pôr em movimento. São tradicionais as
principais etapas da intriga que as condicionam: o fratricídio dos dois
herdeiros de Édipo, incompatíveis nas suas pretensões ao poder; a salvação de
Tebas articulada com a perdição dos seus senhores que persiste à assimetria nos
funerais que a cidade lhes destina, acrescida da proclamação de um castigo para
quem tentar desobedecer. Anouilh deixa patente o efeito essencial que pretende
obter que são mais os homens do que os acontecimentos colocando perante o
público do seu tempo.
Seu porta-voz o coro, sem dele
se dar qualquer especificação em termos de sexo, idade ou estatuto, o torna
meramente funcional, e essa função mais próxima de uma parábase cômica do que
de um estásimo de tragédia. As suas palavras constituem uma reflexão dirigida
apenas ao extracênico, sem qualquer implicação direta sobre os acontecimentos.
A vida, como a tragédia,
constrói-se e avança no seu padrão permanente. O paralelo com o que a literatura
veio a inventar como “drama” burguês nada tem da seriedade da tragédia; admite
a aventura, o imprevisível, como também a esperança de salvação e o "happy
end". A tragédia não. Nela não existem bons nem maus, se culpa existe é da
própria condição humana na sua imperfeição essencial.
É niilista (Niilismo - "é a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao “porquê”. Os valores tradicionais depreciam-se e os "princípios e critérios absolutos dissolvem-se". "Tudo é sacudido", posto radicalmente em discussão. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro".) a visão que Anouilh
tem do herói trágico, talvez fruto das circunstâncias esmagadoras que o
rodeiam. O seu “herói” não ergue a cabeça para olhar de frente o destino que o
desafia. Rende-se, como um rato, deixa-se esmagar, não tem grandeza. O que
torna a pequena infelicidade de cada um num paradigma humano, o que dá
dignidade e glória à insignificância de cada criatura, o que desencadeia, acima
do chão raso da vida, forças ocultas e poderosas, anônimas, distantes e
esmagadoras. Mais do que ação, tragédia é a palavra, um convite a aprender pelo
sofrimento e a verbalizar o sentido oculto da contingência humana.
Consideremos agora, em traços
fundamentais, a opção impressa por Anouilh sobre o velho mito e suas leituras
dramáticas determinantes. Citando Brecht, Breda Simões recorda no seu prefácio:
"A resistência
simbolizada pela figura central da tragédia de Sófocles não tem comum medida e
imediata relação com a resistência francesa à ocupação ou com a resistência
alemã à opressão. O que os dois dramaturgos pretenderam foi apresentar a
trágica ambiguidade de uma situação concreta – um tipo de tragédia diferente da
grega, onde o homem já se não encontra cega e inevitavelmente submetido a um
destino, abstrato e inflexível, mas se situa num plano concreto no qual o
destino do homem é o homem."
Anoilh concentra o clímax da
sua ação no confronto entre Antígona e Croente. Mas, em torno desse conflito
simbólico entre o individual e o coletivo, aprofunda, numa sequência de cenas,
a personalidade de cada um dos contendores, multiplica-lhes os traços,
rodeia-os de outras figuras com que contracenam, concretiza-lhes a natureza e a
humanidade. Introduz assim, de um modo claro, o dado psicológico, em detrimento
do que em Sófocles era essencial, a ordem superior do mundo perante a grandeza
que, sob a debilidade, existe no Homem. O efeito final de uma e de outra opção
é, em resultado, contraditório. Ama tem a função, que lhe é específica, de
substituir o papel materno, consumada a morte de Jocasta. É sua preocupação,
como a de qualquer mãe atenta, proteger as duas órfãs, Antígona e Ismena,
preocupar-se com elas, defendê-las, porque é também pelos pequenos gestos que o
afeto se exprime. Entre as duas, a ama nutre uma preferência por Antígona lhe
retribua a dedicação – este é mesmo, na sua alma arredia, o único afeto. Anouilh, alterando a estrutura sofocliana,
anterioriza, na medida em que nele radica a primeira Antígona, a criança que
começa a desenvolver afeições. Apesar das flagrantes incompreensões que resultam
do choque entre o espírito “concreto, comum” da velha mulher em contraste com a
excepcionalidade de Antígona, a ama é, mesmo assim, a única interlocutora para
os afetos profundos e as carícias de que é capaz a filha de Édipo.
Anouilh valoriza alguns pormenores pessoais das duas interlocutoras.
A oposição tradicional entre as duas neste
momento decisivo alarga-se, como uma força determinada pela própria natureza, à
infância, ao “sempre” das suas vidas. E tem por motivos pormenores que, mesmo
se superficiais, são marcantes. Ismena sempre foi mais bela, mais descontraída,
normal, características que Antígona tende a invejar nessa irmã, que Anouilh
converteu na mais velha.
Exatamente como mais velha, fica-lhe bem
assumir a voz da prudência e da sensatez. Com a rejeição que manifesta de
aderir ao projeto de Antígona, Ismena traz ao contraste físico, que até aqui
centrou as diferenças visíveis, um outro, íntimo, o do entendimento que cada um
tem do que seja “senso”. Este é o ponto central do "agôn" entre as
duas irmãs, que não passa de uma espécie de ensaio do que se seguirá com Creonte.
“Compreender” é a palavra que as divide, desde crianças; um “compreender” que,
para Ismena, significa “aceitar” as regras, o que Antígona lê como
“conformismo”. A esse poder tirânico, Antígona reage nos pequenos gestos do dia
a dia – tocar na água fria e molhar o lajedo, meter as mãos na terra e sujar o
vestido, dar tudo o que se tem ao primeiro mendigo que aparece, beber água fria
quando se está quente –, como nas grandes decisões do seu trajeto. É para um
desvio equivalente, transposto para a ordem social e política de Tebas, que
agora se prepara. Ao contrário de Ismena, subjugada à ordem estabelecida pelos
convencionalismos em vigor, Antígona ergue-se contra o rei, antes de mais, como
encarnação dessa disciplina, mas, através dele, contra toda a comunidade.
No fim desta linha coesa da
multidão anônima, estarão os guardas, o paradigma da sujeição
amorfa e inconsciente. É contra esta degradação hierarquizada, que provém do
rei e prossegue até aos mais humildes executantes da sua vontade, que Antígona
reage. A nova Antígona é uma criatura humana, que não dispõe de uma coragem
heróica, que é sensível ao impulso da vida e pequena para enfrentar a grandeza
do ato que prepara. O que a move é nesta nova versão, o inconformismo, a
incompatibilidade, não com a vida em si mesma, mas com um certo padrão de vida,
que liminarmente rejeita.
E esta mesma atitude que se
vai impor na cena seguinte, entre Antígona e Hemon, o noivo. Este é um encontro
que não existe em Sófocles, onde a relação de Hemon com Antígona importa mais
para a avaliação da ordem de Creonte do que nos seus contornos afetivos.
Anouilh, ela vem na linha de um
conjunto de traços que acentuam o sentimental e o psicológico. Perante Hemon, o
primeiro movimento é o do afeto, que se exprime num abraço efusivo; mas logo a
contradição determinante na alma de Antígona fala mais alto e inicia a
demolição do sonho de uma vida em comum. Porque, também neste caso, a “normalidade”
de uma relação conjugal não lhe serve.
(Hemon)
Um diálogo extenso entre os
guardas, apavorados com a transgressão que detectaram, e o soberano põe em
cena, em tons fortes, a arquitetura da submissão em que assenta a concepção de
uma cidade como Tebas. Os depoimentos feitos pelos guardas, insistentes em
questões burocráticas e hierárquicas. De uma forma prosaica, a máquina
opressiva em que a ação, agora coletiva, se move.
Anouilh lança um objeto que,
na sua insignificância, altera todo o sentido do momento: a mão que se opôs a
Creonte não vem do além, mas de uma muito humana memória de infância. O alívio
que desanuviou as apreensões do corpo de guarda é também, nos comentários
vulgares que lhe são permitidos, a imagem de uma anulação temerosa, que,
satisfeita a imposição do chefe, se expande em festejos, à sombra triste das
tabernas. De forma indireta, este diálogo, no seu próprio grotesco, contribui
para preparar o perfil autoritário do ditador, cuja chegada está iminente.
Anouilh reserva, no entanto, ao seu público, uma surpresa na caracterização do
seu Creonte. É o conciliador, brando, mais disposto a salvar Antígona do que
lhe parece um ato irrefletido do que a condená-la, apesar de continuar no seu
papel de salvaguarda da ordem do Estado. Mandar matar Antígona seria um rasgo
de tragicidade. O próprio Creonte é demasiado prosaico e objetivo para ser um
herói dominador. É verdade que a tradição lhe destinou, na história, o papel
antipático; mas o autor despiu-o, desta vez, da determinação do “clássico e
bruto tirano” e fê-lo hesitar. Nela o novo monarca entrevê o “orgulho” paterno,
aquele desejo de grandeza e de heroicidade próprio de
quem encara “a desgraça humana como demasiado pequena” e precisa de “afrontar o
destino e a morte”. Esses são os que agem de acordo com o nome que usam, o de
Édipo ou Antígona, e a sua eterna ressonância trágica. A beleza que os impõe
está no aderir sem margem para esperança à sua tragédia; é então que se
revestem de um esplendor sobre-humano.
Creonte que inaugura em Tebas
uma nova dinastia, a dos “príncipes sem história”, ou seja, na transposição
moderna da tragédia, a heroicidade de vestir a pele de um ser humano vulgar.
Ele mesmo define os traços elementares da sua nova personalidade:
“Chamo-me
apenas Creonte, graças a Deus. Tenho os pés bem fincados na terra, as mãos
enterradas nos bolsos, e, já que sou rei, resolvi, com menos ambição do que o
teu pai esforçar-me por tornar menos absurda a ordem deste mundo, se isso for
possível. Não é uma aventura, é uma profissão diária e nem sempre agradável”.
É, portanto, no pressuposto de uma objeção entre duas criaturas mais reais e
mais próximas que se baseia o "agôn", onde Antígona apregoa que
defende o que julga ser o seu “dever” e Creonte o que entende por “sua lei”.
(Paulo Autran como Creonte)
A grande prova a que Creonte se
vê exposto é a de defrontar-se com a ambiguidade de uma situação, cujo controle
lhe escapa. Cabe-lhe “escolher” – e a opção constitui o seu grande drama –
entre os deveres funcionais de um burocrata e os sentimentos de um tio que quer
salvar a sobrinha. Submisso às imposições de um Estado também ele em
decadência; torna-se, por isso, um cínico, e apesar de “demasiado sensível para
dar um bom tirano”, mesmo assim condenará Antígona por subserviência ou
hesitação.
Anouilh desmonta agora o papel
que sempre coube a Polinices. O cadáver exposto reduz-se, de prova de um delito
contra a obediência devida a Thémis, a um pedaço de carne malcheiroso, que se
algum sentido tem é de ordem política. É sem convicção que atua, levado apenas
pela necessidade de fomentar, com um paradigma como outro qualquer, a ordem em
sua volta. É o que ele chama “ossos do ofício”, as sequelas do exercício de um
poder que Creonte destaca de si mesmo, como uma mera profissão. Dos dois irmãos
mais velhos que na infância lhe destruíam os brinquedos e eram motivo de
constantes disputas. Etéocles e Polinices eram apenas dois crápulas, desajuizados
primeiro na irresponsabilidade juvenil, criminosos mais tarde, no seu desejo de
descer o pai do poder de Tebas para darem satisfação a uma ambição condenável.
Os funerais de Estado com que Creonte distinguiu Etéocles não passaram de uma
fachada política a esconder apenas uma triste verdade; o herói não era melhor
do que o traidor. Nem sequer
se soube, após a luta fratricida, a qual dos dois pertenciam os despojos, a
abandonar ou a sepultar. Anouilh destrói por completo a ideia do dever perante
os mortos, de qualquer ligação sentimental para com Polinices, ou de uma
oposição entre o defensor e o atacante de Tebas.
Sobre Creonte que a ação sobretudo
se centra. Como na tradição, sobre ele recaem em todos os tons, as
recriminações: de Hemon, que brada contra a execução da noiva e o rasgar da
imagem que reservava de um pai atento e compreensivo; de Eurídice que pousa
finalmente a malha, a ocupação de uma vida inteira, para morrer, refugiada no
silêncio. E mergulha então na sua rotina que é, na existência que escolheu, o
seu inferno.
São estes os novos contornos de
uma Antígona que Anouilh conformou à experiência do século XX.
Mais do que a “desadaptação”
de Antígona será talvez Creonte que mais fala à sensibilidade moderna. É nele
que encarna a existência possível num mundo em decadência, é ele o homem
concreto esmagado por múltiplas contradições. Mesmo se inegavelmente
conformista, luta ainda diante das opções impostas pela violência diária, sendo
o seu trágico a submissão, a falta da grandeza utópica dos heróis.
(Os vídeos abaixo não está em português, mas vale a pena dar uma olhada)
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